Discussão do Caso Dora (1901-1905)

CASO CLÍNICO
Em outubro de 1900, Freud inicia a análise de Dora, uma moça de 18 anos que foi levada pelo pai para tratamento de sintomas que não tinham explicação médica.O pai havia sofrido de diversas enfermidades, consultando-se com Freud quatro anos antes.Dora começou a apresentar sintomas neuróticos aos oito anos, uma dispnéia crônica; aos 12 começou a sofrer de enxaquecas e de acessos de tosse nervosa; aos 16 a enxaqueca desapareceu, mas a tosse continuou, e quando começou o tratamento sofria de crises de tosse com perda da voz.
Também apresentava um desanimo, evitação dos contatos sociais, fadiga e falta de concentração, além de uma crise de apendicite em dado momento de sua história. Tratava-se de um caso de histeria.
O pai queixava-se de uma implicância que Dora tinha com o casal, amigo da família – Sr. e Sra. K –, insistindo para que cortassem relações, e queria que Freud induzisse Dora a deixar essa implicância de lado.
Dora, no decorrer da análise, relata essa implicância explicando que pensava que o pai tinha uma relação amorosa com a Sra. K, e que o Sr. K. tentava seduzi-la; ela se sentia usada pelo pai, que de certa forma, a oferecia ao Sr. K. para manter a relação com a Sra. K.
A análise durou três meses, sendo interrompida por Dora.
Freud escreve o caso em janeiro de 1901 e publica em 1905. Ele analisa o processo terapêutico observando que deixou lacunas nas interpretações e não soube manejar de forma satisfatória com a transferência. Reforça sua teoria da interpretação dos sonhos ao analisar dois sonhos da paciente que formam o pano de fundo interpretativo do tratamento.
DISCUSSÃO
Em Inibições, Sintomas e Ansiedade, Freud descreve como se dá a formação de sintomas na neurose e sua relação com as inibições e angústia. Se reposiciona sobre a questão da angústia, que agora ele entende como uma reação do Ego frente às situações de perigo e não mais como resultado da transformação direta da libido. Seu entendimento, assim, passa a ser que a angústia é propulsora do recalque e não mais resultante deste, uma vez que a libido é inconsciente e a angústia é um afeto egóico – é o sinal do desprazer defensivo, eliciado pelo Ego.
No capítulo V temos a afirmativa de que na histeria de conversão não há qualquer sinal de angústia uma vez que os sintomas são processos catexiais permanentes; como se toda energia tivesse sido usada para a conversão. Uma vez instalado o sintoma (que sempre tem relação com a experiência traumática) esta via serve como escape para diversos conteúdos conflitantes; ou seja, o mesmo sintoma pode estar relacionado a diferentes representações, pois estas vão mudando à medida que o quadro evolui. “Há, além disso, pouco a ser verificado na histeria de conversão da luta do ego contra o sintoma após a sua formação” (p.114; 1925-1926).
De acordo com esse processo de formação de sintomas na histeria, entendendo este como um processo patológico que modifica uma função, sua relação com a angústia, que é a “mola propulsora” para o recalque e, ainda, que a inibição é uma diminuição da função com o objetivo de reduzir o desprazer e que tem estreita relação com os conceitos anteriores, até por vezes sendo con-fundida com o sintoma, passo a descrever como se dá este processo no caso em questão.
Freud faz a análise com o objetivo de tornar consciente os processos que levam à formação de sintomas de Dora e, desta forma, removê-los e substituí-los por pensamentos conscientes; para tanto ele conclui que o trauma se estabelece a partir da experiência com o Sr. K, que por sua vez remonta à infância dela:
- Cena do beijo: Dora sente repugnância ao invés de excitação (o que Freud assinala que seria normal em uma adolescente virgem); aqui podemos perceber uma inversão de afeto e um deslocamento de sensação (repugnância-excitação; sensação desprazerosa no estômago-sensação genital, respectivamente); ainda desta cena resultou uma inibição, parecida com uma fobia, que era a aversão ao passar por qualquer homem que estivesse conversando com uma mulher animadamente. O sintoma aqui é demarcado pela inversão de afeto e pelo deslocamento de sensações; as inibições podem ser entendidas como o retraimento social (evitava contatos sociais antes estabelecidos, como o afastamento dos K e de situações como as descritas acima).
A conclusão a que Freud chega é que provavelmente ela tenha sentido a pressão do órgão masculino, que foi dissipada de sua memória e substituída pela pressão no estômago, o que caracteriza repressão e deslocamento; portanto, essas construções substitutivas tiveram objetivo de “guardar” Dora de remontar à percepção reprimida.
- Cena do lago: ao final da análise Freud descobre que esta cena aconteceu alguns dias depois de a governanta dos K ter contado à Dora sobre sua relação com o Sr. K e como ele a teria usado e feito promessas que não cumpriu; no passeio do lago, portanto, Dora esbofeteia o Sr. K porque os argumentos deste foram os mesmos proferidos à governanta, sendo que Dora se sente diminuída na mesma posição daquela, e ainda com ciúmes, sendo então a atitude tomada uma vingança contra o Sr. K, uma vez que ela esperava que ele se casasse com ela um dia.
- Primeiro sonho: “Uma casa estava em chamas. Meu pai encontrava-se de pé ao lado da minha cama e me despertou. Vesti-me rapidamente. Mamãe queria parar e salvar sua caixa de jóias, mas papai disse: ‘Recuso-me a deixar que eu e meus filhos sejamos queimados por causa de sua caixa de jóias’. Descemos apressadamente as escadas e logo que me encontrei fora da casa despertei”. Freud conclui que este sonho é uma reação à experiência no lago e à situação de Dora, que se encontrava na casa dos K, em um quarto onde o Sr. K tinha acesso, o que representava um perigo à sua virgindade (representada no sonho como a caixa de jóias); Dora recorre então ao pai, evocando seu amor infantil por ele, para se proteger do amor pelo Sr. K e o que isso poderia causar.
- Segundo sonho: “Eu caminhava a esmo por uma cidade desconhecida. As ruas e praças me eram estranhas. Cheguei, então, a uma casa que eu morava, fui para meu quarto e lá encontrei uma carta de mamãe. Esta dizia que, como eu saíra de casa sem o conhecimento de meus pais, ela não desejara escrever-me para contar que papai estava doente. ‘Agora ele está morto, e, se você quiser, pode voltar’. Dirigi-me então para a estação – ‘Bahnhof’ e indaguei umas cem vezes: ‘Onde fica a estação?’ E sempre me respondiam: ‘A cinco minutos daqui’. Vi a estação à minha frente, e nela penetrei, lá encontrando um homem a quem fiz a pergunta. Ele respondeu: ‘A duas horas e meia daqui’. Ele ofereceu-se para acompanhar-me mas recusei e continuei sozinha. Vi a estação à minha frente mas não consegui alcançá-la. Ao mesmo tempo, tive a mesma sensação de ansiedade que se experimenta nos sonhos quando não se consegue mover. A seguir, estava em casa. Devo ter viajado neste meio tempo, mas nada me recordo quanto a isso. Entrei no alojamento do porteiro, e perguntei por nosso apartamento. A criada abriu a porta e respondeu que mamãe e os outros já estavam no cemitério”. Freud conclui que este sonho denotava o desejo de vingança de Dora contra seu pai, por ele a ter usado para manter a relação com a Sra. K; Freud aponta aí o próprio desejo de Dora, pontuando que ela se deixou ficar nesta relação, que era favorável aos seus impulsos amorosos pelo Sr. K e também tinha responsabilidade. Ainda esclarece através deste sonho o sintoma da apendicite, que se configurou num castigo por ter lido na enciclopédia sobre questões sexuais quando foi se informar sobre a doença (Dora tinha conhecimentos avançados destas questões, o que era estranho para uma moça virgem); aqui mais uma vez pode-se perceber o mecanismo de formação do sintoma, através do recalque e do deslocamento. Ainda por este sintoma Dora realiza uma fantasia de parto, que está relacionada com seu afeto pelos filhos dos K e seu amor recalcado.
Ao final, Freud assinala o desejo homossexual inconsciente pela Sra. K, o que destaca como uma corrente de pensamento muito forte nos neuróticos, e que não pôde ser esclarecida, devido ao encerramento da análise. Dora, apesar de a Sra. K ter feito calúnias contra ela, a poupa de suas vinganças. Relacionando esta situação ao complexo edipiano, vemos a mãe de Dora como muito ausente na relação, como alguém que não exerce seu lugar de mãe e de esposa; por outro lado, vemos a Sra. K como a mulher que vem tomar este lugar (que seria da mãe), que é a mulher desejada pelo pai, sendo então uma figura propícia para a identificação de Dora, o que de fato acontece (Dora demarca com seus sintomas a necessidade de ser uma mulher acima da Sra. K, que sempre estava doente quando da presença do Sr. K; os sintomas dela vão em sentido contrário a isto, ficando doente quando o Sr. K não estava e estando disposta quando ele estava. Aqui Freud analisa a afonia de Dora, que ocorria quando o Sr. K estava ausente e se comunicava com ela por meio de cartas).
Decorrido um tempo do término da análise, Dora retorna ao consultório de Freud dizendo que seus sintomas haviam melhorado e que havia dado uma resolução para a situação em que se encontrava quando da análise.
Pode-se destacar aqui os sintomas de Dora como inibições impostas pela reação de recalcamento, a fim de evitar que certos conteúdos produzissem angústia são deslocados para uma via de escape no corpo; as inibições podem ser nomeadas como o isolamento, a evitação de certas situações, a afonia. O sintoma propriamente dito, e que é particular na histeria de conversão, é o deslocamento, pela ação do recalque, de conteúdos conflitantes para uma via somática; esta via, por sua vez, sempre tem relação com o trauma, como a tosse e o catarro neste caso, que eram uma formação remontante à masturbação infantil e à relação sexual, temas proibidos e que são passivos à ação superegóica.
Por fim, fica claro a ausência de angústia no caso da conversão; Dora não sente qualquer ansiedade consciente, sendo a procura pela análise resultado da intervenção do pai e de sua clara posição no seu meio, que mais fazem sofrer à família do que a ela propriamente.

Referência:
Inibições, Sintomas e Ansiedade, (1925-1926).

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